A mulher não tem valor determinado como uma pérola. Abstracta como os espíritos, espiritual como os anjos, não há teólogo, nem matemático, que a defina pelo dogma, ou a calcule pelas operações infalíveis. Sabe-se que vale muito; mas não é ela que o sabe. Sabem-no aqueles que sofreram por ela, embora as flores do triunfo pendam murchas na sua coroa de martírio. Sabem-no os que tiveram alma sedenta de paixões, embora bebessem alfim por taças de oiro esse licor, que embriaga, sacia, entorpece, e paralisa.
c.c.branco
Lembras-te querido?

Lembro-me de quase todas as discussões, de todos os gritos, de todos os murros na parede, de todos os choros, do desalento constante, das palavras ditas com raiva, do silêncio incapaz de oferecer solução, das traições, da dor no peito, dos psicólogos, dos comprimidos, da insónia suada e, acima de tudo, lembro-me do esforço partilhado para que tudo se resolvesse, para que voltássemos a fingir em jantares a dois na churrasqueira ou no restaurante chinês do fim da rua e das mil garrafas de vinho que despejámos numa sofreguidão de condenados. Lembro-me dos bares, das roupas pretas, da música alta que nos comia o corpo à dentada e da conversa desconexa sobre livros e filmes que não conheço. O esforço que fiz para ser igual aos outros, para que ninguém desse por nada, milhões de cigarros fumados numa pose que julguei ser a minha. As emoções sempre à flor da pele; a exigência do sexo, a minha total incapacidade para o acto, a vergonha do meu corpo em choro miúdo a acontecer-me cá dentro. E, no entanto, um terror enorme perante a possibilidade da traição: um ciúme homicida, uma coisa gelatinosa a prender-me os passos e a socar-me o estômago até ao limite da doença; uma desconfiança infantil em cada olhar, uma certeza de ouro nas minhas visões pornográficas. Um enjoo sepultado no peito que masturbou a minha dor.
Lembro-me dos estores corridos e das horas passarem implacáveis, uma após outra, no interior do quarto As vezes não fui trabalhar de manhã: Uma estrumeira a fazer de lastro nos meus ossos e o espasmo da minha admiração perante tudo o que acontecia. Ainda assim, num silêncio de gato, a casa a crescer em móveis, estantes, luzes, aparelhos...coisas que surgiam pela força da sua feminilidade; um crescer que me remetia, atónito, à passividade, um crescer maior que eu, já sem opinião para coisa alguma - Sim, a indiferença matou-nos.
O bolor que saía do meu corpo, quando ela o ensaboava na banheira, misturando intimidade com a vontade de se ser casal ou algo que o valesse, tornou tudo evidente e explicado.
De maneira que fiz a mala apenas com roupa suja, mesma mala que meses antes nos tinha levado a Amesterdão, Florença ou Londres e parti para casa de meus pais, sem um livro, um disco, uma fotografia, nada.
... .
atire